Este novo livro de Whisner Fraga, Usufruto de ruínas, chega às mãos em setembro de 2023, um ano e quatro meses depois de seu antecessor, Usufruto de demônios, sobre o qual registrei as palavras acima, presentes no posfácio. São livros com diferenças e similaridades; têm textos em comum e dissonâncias. Embora sejam obras distintas, quisemos manter o paratexto à primeira edição de Usufruto de demônios, por julgarmos que esse escrito conversa bastante com os contos que nesta obra se compilam.


Entre maio de 2022 e setembro de 2023 tivemos, principalmente, a interrupção de um desgoverno federal nazifascista no Brasil, simbolizada pela derrota da extrema-direita no dia 30 de outubro, e a eleição do presidente Lula; a culminância de diversas preparações de golpe de Estado e de atentados terroristas, levada a cabo e materializada na barbárie do oito de janeiro, e alguns encorpamentos de investigações e ações contra golpistas e contra o núcleo duro do hediondo ex-ocupante da presidência. Entre tantas outras coisas que têm passado: lazeres, notícias, apreensões, perplexidades, tempos e dias. O tempo entre o posfácio e esta nota, portanto, tem cargas extremamente distintas. Escrevo hoje não aliviado, evidentemente: porque seguimos à espera de justiça, da justa e rigorosa aplicação das leis da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 contra todos os que tentaram e tentam tornar o Brasil um estado de exceção, uma ultradisney ainda mais abjeta, um permanente abatedouro do arbítrio. Logo, não falo a partir da tranquilidade. 


No entanto, escrevo hoje desde um instante levemente mais respirável. A taxa de respirabilidade – nos nossos dias, é necessário mensurá-la –, quando um pouco maior, não deve ser sinônimo de distensão, relaxamento. Mas de reorganização, de tomada de fôlego e retomada de planejamentos e ações contra o aparelhamento das forças fascistas. Mais capacidade de respiração deve significar mais programações de práxis contra o fascismo à brasileira, conforme mencionei no colofão de meu livro de poemas Pornografia em extinção, publicado pela Patuá, em 2019. 


Feito este preâmbulo, volto ao escritor Whisner Fraga. Quero rapidamente fazer alguns comentários sobre os contos de Usufruto de ruínas a partir de vetores temporais, dessas linhas de força; ou melhor, através dessas duas mensurações: a temporalidade geral dos contos, sua carga de tempo sentimental. E sua respirabilidade, a taxa de respirabilidade, presente nos relatos deste trabalho. 


Vejo quatro grandes blocos temporais nos textos que lemos; vejo, paralelamente, quatro grandes ritmos respiratórios.


O primeiro bloco temporal é aquele que está presente em contos como “a decomposição do aço”. São textos apocalípticos, pós-lapsários. Cito: “aeronaves esfolam um céu tumultuado de fuligens, o pó aterrissa na varanda dessa casa inquieta, as gatas acossam libélulas incendiadas, a menina recua no meio-dia consumado, o rio também está morto há décadas, menina, tudo está morto, só falta decretarem: o ar, as praças, as avenidas, um cinza desonroso, alguém derrama uma água infértil na jabuticabeira, a terra humosa, o voo se afoga na poluição encardida e some, uma tempestade de vagalumes queimados arrebata a sacada, tudo está morto, menina, o horror está expulsando a podridão.” Textos assim apresentam altas taxas de respirabilidade. Quando tudo termina, quando a coluna vertebral do mundo se arrebenta, quando se esburaca a tessitura do todo, das fendas e rasgos brotam dutos de ar: visões, planisférios, tempos outros, diversos do tempo-capital. Por isso cada pensamento apreensivo a respeito do apocalipse – isto é uma obviedade – é sempre um pensamento esperançoso, com mais ou menos segredo. No “meio-dia consumado” o horror expulsará a podridão. O tempo do grande incêndio será, por isso, um tempo de reencontro com as aparições do ar livre. Foi-se – se terá ido – o estertor, o estrebuchamento do tempo-dinheiro o qual, como o famoso pré-cadáver de Poe, estava perpetuado em seu contínuo apodrecimento. A cremação do mundo, segundo relata Whisner, em seu Weltende, para lembrarmos do expressionista Jacob van Hoddis, é a constatação de sua possível reoxigenação. As libélulas carbonizadas, como aviões em miniatura, reconstelam-no, e nessa nova constelação pulverizam, sobre o céu negro, gotejos de tutanos de carvões e costelas quebradas. Numa palavra, temporalidades como a de “a decomposição do aço” põem em cena maciços blocos de ar. Como, em textos assim, os recursos são vastos, basta e impetuosa é a taxa de respirabilidade. 


O segundo bloco temporal está na estruturação à noticiário. Fragmentos e excertos avulsos traçam, crítica e habilmente, um panorama da vida dos últimos anos e de possíveis derivações de seus impasses, a partir de temáticas que possuam, em maior ou menor medida, caráter e interesse publicitário, com carga paródica ou solene. A inteligência artificial que se torna corporalidade estupradora; o aplicativo de relacionamento, voraz utopia, durante a distopia pandêmica; a “crise” da construção civil e o sindicato de mastins; o fetiche em leite materno; o ódio da família reacionária ao padre Júlio Lancelotti; pessoas famélicas à procura de dejetos ósseos cuspidos do bojo de um caminhão; uma liquidação na Magalu. Essa temporalidade é o tempo cotidiano da crônica, da água-forte, do caça-clique, do feed. A respirabilidade que traz consigo, que arvora seu diafragma, é compassada, dinâmica, breve, rítmica, e concorde, portanto, com a extensão dos pequenos contos. 


O terceiro bloco temporal é o de gênese do ódio – deste tipo específico de ódio, o do fascismo à brasileira. E o tempo de sua consumação. O conto “dilma, vai tomar no cu” aloca-o em seu ato inaugural, sua épica perversa, em sua pantomima bufa, no contexto da estreia da Copa do Mundo de 2014, o fatídico Brasil 1 x 0 Croácia, em Itaquera. Gol de Oscar, o autor do tento brasileiro no 7 x 1, algumas partidas depois.  Já o cínico organograma do final, que encerra este trabalho, uma espécie de slide de coach, de um palestrante motivacional num palanque desses tétricos ambientes de empresa, satura-o, a esse tempo de ódio em maturação, ao máximo. Ou seja, revela-o pornograficamente. Da gênese do ódio passamos ao explicitado tiro na têmpora, ao pipoco oriundo do ferro do cidadão de bem, endriago brazuca anfetaminizado e legitimado pela radiação do seu mito, o paraquedista fake e genocida, cuja especialidade é matar. Neste terceiro bloco temporal, a taxa de respirabilidade é baixa, entrecortada. Releiam, por exemplo, “dilma, vai tomar no cu” à luz da pontuação: a repetição dos dois pontos, a tensão crescente, a perda de referentes, a frase interrompida, ao final. O sufocamento. 


O quarto bloco temporal pertencerá a um tempo amoroso. Vê-se-o em “lar”, além de outros outros fragmentos em que surge algo assim. Cito: “a menina planta o polegar na terra, uma euforia mergulha naqueles tufos marrons, até à agitação, um apelo atraca nos lábios e ela sorri, com um alvoroço na palma: uma minhoca, a menina resgata o bicho e o traz ao ar: engasga um temor, ela pode morrer?, devolve tudo ao vaso: há tanto arrebatamento em tão pouco mundo.” Neste arrebatamento, talvez exíguo, talvez ínfimo, só que certamente existente, é que algo, de novo e de maravilhoso, é trazido ao ar. E com esse gesto, algo respira uma outra vez. E se respira e resiste é preciso cultivá-lo, sendo que está vivo, e dado tudo o que significa. 
 

Gabriel Morais Medeiros