dizem por aí

Li na ficha catalográfica de seu livro que você nasceu em 1971. Nenhuma outra informação biográfica. Nada sabe o leitor em que cidade de Minas você nasceu, como era a escola primária em que estudou, se tomou banho de rio, brincou de gude, o que lhe ficou dos roxos, dos preceitos e das procissões da Semana Santa, se havia matraca na Quinta-feira de Trevas, o que guardou da imagem do Senhor Morto; se, em sua cidade, a igreja era barroca, se havia em volta montanhas, se foi cursar o secundário num colégio católico em regime de internato; se e quando leu Boitempo, de Drummond, o poema “Infância”, de Paulo Mendes Campos, o conto “O carneirinho azul”, de Otto Lara Resende, a ficção de Guimarães Rosa, Itinerário poético, de Emílio Moura, Confissões de Minas, também de Drummond.


À medida que eu ia lendo, devagar, bem devagar, os poemas de seu livro, me fazia essas perguntas. Uma estilística, vamos dizer assim, foi o que se impôs na leitura, a da reiteração obsessiva da preposição “para” e o uso deliberado, também obsessivo, dos verbos no infinitivo (impessoal). Mesmo onde essa preposição não aparece, ela fica subentendida, tanto quanto a sintaxe dos verbos em suas formas nominais.


A parte ou seção inicial “Antes do verbo” me parece dispensável. São circunlóquios. Os poemas prescindem dessa “justificativa”, ou do que soa como “explicação necessária”. Que eles próprios digam a que vieram. E o dizem. Há uma construção, no sentido de que você riscou um projeto e o seguiu; o livro, por isso, tem uma unidade; há nele talvez um certo construtivismo à la João Cabral de Melo Neto, não a influência de sua poética, nem, muito menos, o decreto de banir palavras abstratas). Isso me fez pensar na palavra vers em francês, que, além do substantivo “verso”, pode indicar também como preposição “em direção a”, que equivale a “para”. As “receitas” os “roteiros” dão conta desse projeto de busca da infância, que não é necessariamente a “sua”, mas a do mundo, ou de “um” mundo, em que o “eu” foi arrancado, em que você, o autor, está dessubjetivado. Pois não é com memórias da infância que se faz o que quer que seja, mas com blocos de sensações, certos materiais ou objetos que pertencem ao tempo em pessoa, ao tempo que é nossa unica subjetividade, como fez Proust. E, nessa medida, o passado contraído se distende, o “foi” é o que continua pulsando, ainda que instantaneamente, nos órgãos dos sentidos. O tempo, note, não nos é interior; nós é que somos interiores ao tempo, no qual mudamos, nos perdemos e nos redescobrimos, já que ele mesmo, o tempo, não muda, por ser uma forma vazia, e tampouco é eterno.


O que ficou então em mim da leitura de seu livro? Ficou um entre dois, um intermezzo, alguma coisa no meio, sem as margem: uma, a do projeto falhado de busca da infância; a outra, a da subjetividade que os poemas (re)inventam. Não é sempre no meio que acontecem as coisas? O princípio e o fim não têm interesse algum, porque sem graça. Daí, a contraimagem suscitada pela leitura: uma espécie de cano furado, em que a água não vai de um ponto X a um ponto Y, mas esguicha para todos os lados.


Essa contraimagem subverte o “para”, o “em direção a”, a “receita”, “o roteiro”, o “sentido” perseguido. E o poeta, sem eu nenhum, puxa o tapete que ele próprio teceu.


Foi assim que li O livro da carne. Você merece o nome de poeta.

 

Valdomiro Santana

Li na ficha catalográfica de seu livro que você nasceu em 1971. Nenhuma outra informação biográfica. Nada sabe o leitor em que cidade de Minas você nasceu, como era a escola primária em que estudou, se tomou banho de rio, brincou de gude, o que lhe ficou dos roxos, dos preceitos e das procissões da Semana Santa, se havia matraca na Quinta-feira de Trevas, o que guardou da imagem do Senhor Morto; se, em sua cidade, a igreja era barroca, se havia em volta montanhas, se foi cursar o secundário num colégio católico em regime de internato; se e quando leu Boitempo, de Drummond, o poema “Infância”, de Paulo Mendes Campos, o conto “O carneirinho azul”, de Otto Lara Resende, a ficção de Guimarães Rosa, Itinerário poético, de Emílio Moura, Confissões de Minas, também de Drummond.


À medida que eu ia lendo, devagar, bem devagar, os poemas de seu livro, me fazia essas perguntas. Uma estilística, vamos dizer assim, foi o que se impôs na leitura, a da reiteração obsessiva da preposição “para” e o uso deliberado, também obsessivo, dos verbos no infinitivo (impessoal). Mesmo onde essa preposição não aparece, ela fica subentendida, tanto quanto a sintaxe dos verbos em suas formas nominais.


A parte ou seção inicial “Antes do verbo” me parece dispensável. São circunlóquios. Os poemas prescindem dessa “justificativa”, ou do que soa como “explicação necessária”. Que eles próprios digam a que vieram. E o dizem. Há uma construção, no sentido de que você riscou um projeto e o seguiu; o livro, por isso, tem uma unidade; há nele talvez um certo construtivismo à la João Cabral de Melo Neto, não a influência de sua poética, nem, muito menos, o decreto de banir palavras abstratas). Isso me fez pensar na palavra vers em francês, que, além do substantivo “verso”, pode indicar também como preposição “em direção a”, que equivale a “para”. As “receitas” os “roteiros” dão conta desse projeto de busca da infância, que não é necessariamente a “sua”, mas a do mundo, ou de “um” mundo, em que o “eu” foi arrancado, em que você, o autor, está dessubjetivado. Pois não é com memórias da infância que se faz o que quer que seja, mas com blocos de sensações, certos materiais ou objetos que pertencem ao tempo em pessoa, ao tempo que é nossa unica subjetividade, como fez Proust. E, nessa medida, o passado contraído se distende, o “foi” é o que continua pulsando, ainda que instantaneamente, nos órgãos dos sentidos. O tempo, note, não nos é interior; nós é que somos interiores ao tempo, no qual mudamos, nos perdemos e nos redescobrimos, já que ele mesmo, o tempo, não muda, por ser uma forma vazia, e tampouco é eterno.


O que ficou então em mim da leitura de seu livro? Ficou um entre dois, um intermezzo, alguma coisa no meio, sem as margem: uma, a do projeto falhado de busca da infância; a outra, a da subjetividade que os poemas (re)inventam. Não é sempre no meio que acontecem as coisas? O princípio e o fim não têm interesse algum, porque sem graça. Daí, a contraimagem suscitada pela leitura: uma espécie de cano furado, em que a água não vai de um ponto X a um ponto Y, mas esguicha para todos os lados.


Essa contraimagem subverte o “para”, o “em direção a”, a “receita”, “o roteiro”, o “sentido” perseguido. E o poeta, sem eu nenhum, puxa o tapete que ele próprio teceu.


Foi assim que li O livro da carne. Você merece o nome de poeta.

 

Valdomiro Santana

Li na ficha catalográfica de seu livro que você nasceu em 1971. Nenhuma outra informação biográfica. Nada sabe o leitor em que cidade de Minas você nasceu, como era a escola primária em que estudou, se tomou banho de rio, brincou de gude, o que lhe ficou dos roxos, dos preceitos e das procissões da Semana Santa, se havia matraca na Quinta-feira de Trevas, o que guardou da imagem do Senhor Morto; se, em sua cidade, a igreja era barroca, se havia em volta montanhas, se foi cursar o secundário num colégio católico em regime de internato; se e quando leu Boitempo, de Drummond, o poema “Infância”, de Paulo Mendes Campos, o conto “O carneirinho azul”, de Otto Lara Resende, a ficção de Guimarães Rosa, Itinerário poético, de Emílio Moura, Confissões de Minas, também de Drummond.


À medida que eu ia lendo, devagar, bem devagar, os poemas de seu livro, me fazia essas perguntas. Uma estilística, vamos dizer assim, foi o que se impôs na leitura, a da reiteração obsessiva da preposição “para” e o uso deliberado, também obsessivo, dos verbos no infinitivo (impessoal). Mesmo onde essa preposição não aparece, ela fica subentendida, tanto quanto a sintaxe dos verbos em suas formas nominais.


A parte ou seção inicial “Antes do verbo” me parece dispensável. São circunlóquios. Os poemas prescindem dessa “justificativa”, ou do que soa como “explicação necessária”. Que eles próprios digam a que vieram. E o dizem. Há uma construção, no sentido de que você riscou um projeto e o seguiu; o livro, por isso, tem uma unidade; há nele talvez um certo construtivismo à la João Cabral de Melo Neto, não a influência de sua poética, nem, muito menos, o decreto de banir palavras abstratas). Isso me fez pensar na palavra vers em francês, que, além do substantivo “verso”, pode indicar também como preposição “em direção a”, que equivale a “para”. As “receitas” os “roteiros” dão conta desse projeto de busca da infância, que não é necessariamente a “sua”, mas a do mundo, ou de “um” mundo, em que o “eu” foi arrancado, em que você, o autor, está dessubjetivado. Pois não é com memórias da infância que se faz o que quer que seja, mas com blocos de sensações, certos materiais ou objetos que pertencem ao tempo em pessoa, ao tempo que é nossa unica subjetividade, como fez Proust. E, nessa medida, o passado contraído se distende, o “foi” é o que continua pulsando, ainda que instantaneamente, nos órgãos dos sentidos. O tempo, note, não nos é interior; nós é que somos interiores ao tempo, no qual mudamos, nos perdemos e nos redescobrimos, já que ele mesmo, o tempo, não muda, por ser uma forma vazia, e tampouco é eterno.


O que ficou então em mim da leitura de seu livro? Ficou um entre dois, um intermezzo, alguma coisa no meio, sem as margem: uma, a do projeto falhado de busca da infância; a outra, a da subjetividade que os poemas (re)inventam. Não é sempre no meio que acontecem as coisas? O princípio e o fim não têm interesse algum, porque sem graça. Daí, a contraimagem suscitada pela leitura: uma espécie de cano furado, em que a água não vai de um ponto X a um ponto Y, mas esguicha para todos os lados.


Essa contraimagem subverte o “para”, o “em direção a”, a “receita”, “o roteiro”, o “sentido” perseguido. E o poeta, sem eu nenhum, puxa o tapete que ele próprio teceu.


Foi assim que li O livro da carne. Você merece o nome de poeta.

 

Valdomiro Santana

O seu denso "Sol entre noites", cuja atraente capa negra, fendida pelo sol, antecipa a estranheza da linguagem, que desafia o leitor a decifrá-la. Linguagem erudita, densa, quase cabalística que, labirínticamente, vai desentranhando a problemática central do romance: o doloroso processo existencial do homem, que, arrancado de suas raízes, vê-se transplantado para um novo solo e aos poucos perdendo a própria identidade. Faço votos de que os leitores aceitem o desafio da leitura e descubram o doloroso mundo visto através de "olhares emigrantes".


Nelly Novaes Coelho

Bom dia, caro ouvinte do Livro no Ar. Ituiutaba, cidade mineira, tem a fama de produzir grandes escritores, como Luiz Vilela e Cristina Agostinho. Outro nome deve ser acrescentado à lista: Whisner Fraga.

 

Seus dois romances mais recentes, abismo poente e Sol entre Noites, justificam a inclusão. Ambos foram publicados pela Editora Ficções. Tratam da falta, essa terrível falta que persegue, com especial ênfase, os imigrantes. Na terra estrangeira, a mudança de signos atordoa. O país não é o seu, o povo não é o seu, os costumes são alheios. Ainda mais se o imigrante tem sangue árabe e afinidades muçulmanas e vem morar no Brasil. O estrangeiro fica estrangeiro até diante de si mesmo, com a identidade perdida. Se voltar para casa, se tornará estrangeiro por lá. Quem é ele, afinal?

 

Com essa temática a costurar as duas obras, Whisner Fraga traça um belo painel do imigrante libanês, temperado por uma figura evasiva, Helena, a que tudo vê. Nomes árabes povoam as páginas: hanni, afif, youssef, dib, malika, karam. O ritmo dos livros, rápido, de muito fôlego, algo gongórico, lembra um pouco Raduan Nassar. A linguagem tem força, salientada na riqueza das metáforas. A trama envolve a tradição e os costumes libaneses. O resultado você poderá conferir, se ler abismo poente e Sol Entre Noites. Esses romances resgatam o estrangeiro dentro de cada um de nós. Quem nunca se sentiu estranho numa terra estranha, mesmo que fosse sua própria terra?

 

Luís Giffoni

Whisner, na correria nem te disse. Que belas as tuas poesias. Estou degustando devagar. Como os pré-socráticos, todos poetas, você é um filósofo. Abs do amigo

 

Deonísio da Silva

Whisner,
caro,

 

por intermédio de alguns saraus de são paulo, me chegou em mãos o seu abismo poente. que li em 2010. nunca pude te dizer, e agora o facebook me ofereceu você como conhecido. o livro foi importante, e de certa forma virou referência de poética pra mim. a solenidade e descrença dos tons, a beleza da decadência das imagens que propõe.

uma beleza.

 

Heyk Pimenta

Whisner,

 

Terminei de ler os seus livros e foi uma grata surpresa ter a rara oportunidade de "descobrir" um novo autor, como se eu estivesse a ler pela primeira vez a Saramago ou a Mia Couto.

 

"O livro da carne" me deixou meio ressabiado, querendo descobrir o que se esconde nas entrelinhas (você tem razão ao dizer que o belo está apartado da compreensão: leitor cartesiano, ainda que ao escrever goste de pisotear a razão, tentei "entender" a obra e o que pude fazer foi somente compreender que a sua poesia é uma espécie de prosa em estado puro, gestada na região abissal em que habita a linguagem). "O livro da carne" encanta pela sonoridade e sobretudo pelo que é evanescente, sem se reduzir a um chocalho de palavras como muitas obras cerebrinas que estão por aí. Mas poesia não é muito a minha praia e posso estar a dizer asneiras como os parlamentares equinos de Jacuecanga...

 

Queria falar mesmo do encanto do seu "Abismo poente". Como eu desconfiara, o texto é instigante, trabalha com dimensões profundas da linguagem. O enredo quase que não se apreeende senão em fragmentos que se multiplicam aqui e ali, o que obriga o leitor a buscá-lo até o momento final do livro. Mas cada evocação é também uma narrativa, construída com poderosa adjetivação (poucos autores sabem escrever assim, de forma econômica e contundente ao empregar os adjetivos - penso aqui em Graciliano de Memórias do Cárcere ao falar de um certo "juiz escabroso" e a caracterizá-lo assim de forma tão magistral). O que mais admirei foi a forma como você combinou essa poderosa adjetivação com o ritmo caudaloso da narrativa (sim, você consegue fazer isso mesmo "escondendo" a história do leitor). Chega-se assim ao "absurdo" de ser cativado (cativar é tornar cativo, diz o Piglia) por um livro que você não compreende exatamente, que precisa ser buscado pelo leitor. Livro para ser lido mesmo, difícil de ser resenhado.

 

Ovídio Poli Júnior