A autópsia de nossa desilusão
Por Ronaldo Cagiano
Quem sou eu nesta nau de desvalidos?
Jamil Snege
O que devíamos ter feito
Na teia das relações, o indivíduo ou torna-se presa das convenções ou rebela-se contra o ordinário da vida quotidiana. Não há como contemporizar quando mundos e situações tão antagônicos se colocam à frente. Num tempo de tabu e hipocrisias, nessa época de virtualismo exacerbado em que o falso moralismo e as máscaras (sentimentais, materiais e psicológicas) atuam num teatro de dissimulações, é preciso que a nudez feroz de um olhar crítico seja o canal de interdição da mentira e dos vernizes que tanto desumanizam, acanalham, apequenam e infelicitam-nos íntima ou socialmente.
É com a sensação de chutar o pau da barraca e demolir as estruturas acomodadas que demarcam as zonas de conforto que o leitor vai encontrar-se (ou desencontrar--se) nesses densos e tensos contos que enfeixam “o que devíamos ter feito”.
Whisner Fraga não deixa pedra sobre pedra nessas histórias pungentes em que cada personagem evoca seus fantasmas, dilemas, dramas e obsessões, detona a miséria moral de uma civilização em crise, colocando o status quo no banco dos réus. Os protagonistas desse livro, tendo como êmulo Helena, interlocutora que assimila todo o fluxo crítico e de consciência do narrador e também as expansões oníricas (e machadianas) do autor, transforma o discurso literário numa catapulta, por meio da qual lança-se a um mergulho profundo nas inquietações mais esconsas, sejam elas de ordem filosófica,
existencial ou metafísica.
Nesse sentido, essa entidade que se transforma em trampolim para um diálogo com as nossas guerras interiores, também assume-se como um alter ego do autor, numa espécie de cadeia de explosões, em que múltiplos olhares vão dissecando o cadáver adiado de que somos feitos, expressão de um descontentamento coletivo, metáfora de um generalizado deslocamento ou despertencer(se) .
O ambiente narrativo desencadeado por Whisner Fraga transmuta-se num caleidoscópio de sutilezas estilísticas, em que muitas vezes prescinde da linearidade ou da coerência das histórias (pois onde há caos não há estabilidade formal, mas ruptura), e toma as rédeas uma entidade que subverte toda a ordem estabelecida e anacrônica, que é a primazia de uma linguagem peculiaríssima e sofisticada. Com esse arsenal metafórico e simbólico Fraga vai dando as cartas, a escritura instaura-se com tamanha epifania, eis que todo o conjunto impõe-se por uma imbatível supremacia estética e um flerte com outras artes e autores (como sugere a pertinência das epígrafes). Esse artefato culmina num labirinto em que o autor prospecta emoções, sensações
e evidências dessa nossa – tão disruptiva e insularizante – atualidade, o que, ao final, converte-se em poderosa epifania, hierarquizando aquilo que Jorge Luís Borges considerava como signos evidentes de nossa perplexidade nessa galáxia conturbada e distópica.
O título do livro instiga-nos também a um eterno questionamento sobre a transitoriedade e relatividade das coisas, um ponderar sobre o nosso (de)lugar num mundo coisificado, remetendo-nos ao antológico poema bandeiriano, que dá conta da “vida que poderia ter sido e não foi”. E Whisner retrabalha temas encontradiços – e universais – já percorridos em seus livros anteriores, seja na poesia, no conto, na crônica ou no romance, pois um escritor que se cumpre é sempre cúmplice do que viu, leu, ouviu, experimentou e vivenciou e esses espaços percorridos nunca são derrogados, mas vão se comunicando em outras obras, como num processo contínuo de amplificação de um grito, como evocações de uma ancestralidade crítica, uma simbiose de mundos e percepções, retomando esses símbolos com outro vigor ou clarividência.
Os contos aqui apontam-nos o inaudito, o que está por descobrir, apresentam-se como severas indagações. E quanto mais se perde o narrador em deambulações inquietadoras sobre as colisões que se apresentam na rota de suas helenas, emílios, júlios, vítors, isoldas, dandaras etc., nesse imenso e mítico Tejuco que é a própria condição humana, com seus apogeus e fracassos, mais se acha o autor na certeza de que estamos aí para (re)colher destroços de um desastre que se renova a cada dia e contabilizar os passivos de nossos inesgotáveis espólios afetivos, o verdadeiro inferno nessa nau de
nossas desilusões.
“o que devíamos ter feito” não nos deixa indiferentes, porque acicata nossa intimidade acomodada e ricocheteia o projétil de tantos desassossegos, ecoando no mesmo diapasão, o que nos sinaliza Octavio Paz, em Biografia:
Não o que pôde ser:
mas o que foi.
E o que foi está morto.