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Resenha publicada no jornal A Tribuna Piracicabana, Suplemento Linguagem Viva, em janeiro de 2023. 

Whisner Fraga: contos perpassados por sentimento de revolta

 

 

Adelto Gonçalves

 

I

Depois de lançar, em 2020, O que devíamos ter feito, contos (Editora Patuá), o romancista, contista, poeta e crítico literário Whisner Fraga (1971) chega ao seu décimo-segundo livro com Usufruto de demônios (Ofícios Terrestres Edições, 2022), em que se mantém fiel ao gênero, depois de experiências bem-sucedidas em outras modalidades textuais.

 

A obra, composta por 64 narrativas curtas, a maioria com menos de uma página, todas escritas em letra minúscula, mas com uma linguagem sensível e poética, é uma das primeiras a ter como pano de fundo o trágico período da pandemia de coronavírus (covid-19) em que estão presentes “o horror, o negacionismo, o isolamento social e a perplexidade ante o cinismo fascista”, como observa o poeta, professor e crítico literário Gabriel Morais Medeiros, mestre em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no posfácio que escreveu para este livro.

 

Como já ressaltou o jornalista e escritor Hugo Almeida, nesta coletânea, “atravessa os contos um sopro de revolta, por vezes recheada de candura”, mas sem deixar de manifestar o inconformismo diante da indiferença e do deboche dirigido aos mortos pelas autoridades da época, especialmente o principal mandatário, que sempre ficou indiferente ao genocídio que ocorria com a proliferação da peste e a falta de vacinas e pronto-atendimento às vítimas, como se lê na narrativa que leva por título “ele  acompanha aviões”:

 

“(...) é como se setecentas mil pessoas tivessem

sido apagadas – e se fossem vinte

boeing deletados de suas rotas, em um único

dia?, cadentes, se tornassem quebra-cabeças

em pastos?, será que assim eles se comoveriam?”

 

II

O fantasma da pandemia, porém, não percorre todas narrativas, limitando-se às três primeiras. Nas demais, o que se pode observar é a desesperança da velhice, o desespero diante da possibilidade de se morrer diante de um moleque que na rua agita um revólver, exigindo do passante a entrega do dinheiro, do celular e do relógio, o drama do morador de rua que “garimpa algumas moedas no semáforo e logo as troca por pinga” ou ainda a decepção sentida por uma jovem autora diante da má vontade com que teria sido recebida sua obra por resenhistas desde o primeiro livro:

 

“(...) eles são assim, leem a primeira página,

lambiscam resenhas chinfrins e se vendem

por essas trivialidades (...)”.

 

Na maioria das narrativas, o que se observa é o recurso ao monólogo interior ou ao fluxo de consciência, como se o narrador desfiasse um novelo da memória ou tecesse os acontecimentos de forma extrospectiva, ainda que mergulhado na introspecção e sem perder a cadência da prosa poética.

 

Alguns contos são datados, ou seja, é possível localizá-los em 2014, época da realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, em que praticamente teve início a orquestração por meio das redes sociais dos protestos contra a presidente eleita que funcionaram como uma preparação para o golpe parlamentar de 2016 que redundaria na eleição de um candidato de orientação nazifascista.

Outros contos não deixam de funcionar como crítica à mentalidade fascista que parece insuflada por algumas empresas privadas preocupadas em manter a maioria da população à beira da miséria absoluta ou mesmo condenada ao desaparecimento, como no caso da política desencadeada contra remanescentes indígenas. Ou ainda contra a mentalidade nefasta de arquitetos que não se recusam a imaginar meios de produzir uma arquitetura hostil, que procura dificultar a vida dos moradores de rua.

Enfim, são contos perpassados por um sentimento de revolta que se justifica diante de um futuro que se projetava cada vez mais tenebroso. E ainda parece ameaçador.

 

III

Nascido em Ituiutaba, Minas Gerais, Whisner Fraga é formado em Engenharia Mecânica pela Universidade Federal de Uberlândia. Em Engenharia Mecânica, fez também mestrado na mesma universidade e doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Mas, atraído pelas Letras, curso que iniciou, mas não concluiu, ainda durante o mestrado, publicou o livro de contos Seres e sombras (edição de autor, 1997). Durante o doutoramento, publicou o seu segundo livro de contos, Coreografia dos danados (Edições Galo Branco, 2002), título inspirado em verso de Augusto dos Anjos (1884-1914). Concluiu o doutoramento em 2003 e, desde então, prestou concurso para a docência e vem lecionando para jovens e adultos. Ao mesmo tempo, atua como crítico literário em jornais impressos e sites dedicados à literatura. Também resenha obras de literatura contemporânea no canal Acontece nos Livros, no YouTube.

 

É autor ainda de A cidade devolvida, contos (Editora 7 Letras, 2005); As espirais de outubro, romance (Nankin, 2007), prêmio ProAC do Governo do Estado de São Paulo; Abismo poente, romance (Ficções Editora, 2009), prêmio ProAC do Governo do Estado de São Paulo; O livro da carne, poemas (Editora 7 Letras, 2010); Sol entre noites, romance (Ficções Editora, 2011), prêmio ProAC do Governo do Estado de São Paulo; Lúcifer e outros subprodutos do medo, contos (Editora Penalux, 2015), prêmio ProAC do Governo do Estado de São Paulo; A verdade é apenas uma versão dos fatos (Editora Penalux, 2017); e O privilégio dos mortos, romance (Editora Patuá, 2019);

 

Participou de antologias como Os cem menores contos brasileiros do século (Editora Ateliê, 2018), organizada por Marcelino Freire; e Geração zero zero: fricções em rede (Editora Língua Geral, 2011), organizada por Nelson de Oliveira. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, alemão e árabe e publicados em antologias.